O significado político do monitoramento em um espaço cívico restrito

Author(s): Joy Aceron
Date: 12 de março de 2024
Country: The Philippines
Language(s): Português

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O monitoramento cidadão como meio de ampliar a responsabilização pública tornou-se prática amplamente utilizada no mundo todo ao longo dos anos. Nas Filipinas, onde várias iniciativas bem-sucedidas de monitoramento cidadão foram observadas, a experiência mostrou como o contexto político é um fator fundamental que molda a condução do monitoramento cidadão e o que ele pode alcançar. Quando um contexto político se deteriora, o que isso significa para a prática e as características do monitoramento cidadão? O que isso nos diz sobre as necessidades das redes de cidadãos monitores para seguirem adotando abordagens estratégicas para a responsabilização nas linhas de frente?

G-Watch: monitorando de forma diferente

Uma noção convencional de monitoramento o entende como um processo técnico: coletar dados e informações sobre a implementação ou operação de uma política, projeto, ou serviço para analisar ou avaliar sua performance. Pode ser interno em um órgão que esteja implementando uma dada política, ou realizado por terceiros independentes.

A G-Watch é um movimento de responsabilização cidadã (citizen accountability) nas Filipinas que, entre outras várias ações, monitora serviços públicos visando ao aprofundamento da democracia. Fundada em 2000 como programa universitário, ela 17 anos mais tarde se desvinculou, tornando-se um movimento cidadão que realiza monitoramentos, ações e pesquisas sobre transparência, participação e responsabilização em todo o país.

O monitoramento da G-Watch, especialmente em seus primeiros anos, incluía todos os elementos da noção convencional. O pessoal da G-Watch verifica o cumprimento das normas na prestação de serviços em setores como saúde, educação, assistência social e outros mediante a observação in loco e proporciona feedback a diversas partes interessadas. O termo normas, na G-Watch, se refere a tudo o que os entes responsáveis precisam cumprir – sejam leis, diretrizes, planos ou metas.

Pontos observáveis de monitoramento derivados das normas são a base da ferramenta de monitoramento usada para coletar informações, enquanto paralelamente a G-Watch se coordena com servidores e órgãos do governo. Após as análises, as equipes de monitoramento fazem recomendações ao governo e realizam ações de defesa de causas públicas (advocacy) e de engajamento para pressionar pela implementação das recomendações (veja a figura).

O ponto central das iniciativas de responsabilização da G-Watch são as ferramentas que os monitores usam para verificar a conformidade com as normas. As ferramentas de monitoramento da G-Watch em geral usam perguntas do tipo ‘sim ou não’ sobre o cumprimento das normas, e/ou questionários de pesquisa com partes interessadas sobre a experiência delas na utilização ou participação referente a uma política ou serviço.

Além da noção convencional, e ao contrário do monitoramento realizado por terceiros externos, o monitoramento da G-Watch envolve deliberadamente as partes interessadas estratégicas locais, incluindo comunidades e cidadãos que são beneficiários de projetos ou usuários de serviços. E também não se limita às constatações e à análise de desempenho, mas apresenta e defende soluções.

Por estar na fronteira entre o Estado e a sociedade, o monitoramento de serviços públicos sempre impôs grandes desafios, tanto técnicos como de transparência.
E o monitoramento da G-Watch ― uma organização de pesquisa de ação com foco em ampliar a responsabilização e o empoderamento do cidadão ― vem se tornando, com o tempo, bem mais que apenas um processo técnico.

Enquanto a organização se reinventava, tornando-se um movimento cidadão de responsabilização, uma piora do espaço cívico trouxe uma infinidade de novos desafios e riscos, o monitoramento ganhou novos significados políticos e a organização dos cidadãos passou a ter uma ênfase muito maior entre as atividades de monitoramento da G-Watch.

Num contexto político desfavorável, os monitores cidadãos enfrentam adversidades e resistências e cada etapa parece impossível. Felizmente, no caso da tarefa cumprida recentemente pela G-Watch de se organizar para lidar com o direito à saúde, a superação de desafios e obstáculos também serviu para motivar intensamente e empoderar.

Os desafios diários do monitoramento

Nas Filipinas, não é algo bem aceito questionar as pessoas que são consideradas elite (em termos de idade, posição socioeconômica ou política). Esse aspecto conservador da cultura predominante desencoraja as atividades de responsabilização.

Pode-se dizer que as garantias legais que permitem ao cidadão empreender ações visando à responsabilização tentam neutralizar ou transformar esse padrão cultural. Quando o governo diz que está apoiando e possibilitando a participação, isso fortalece pessoas dedicadas às reformas e à defesa das causas públicas, permitindo que afirmem e materializem as disposições legais, apesar das restrições da cultura dominante.

A G-Watch lida com os obstáculos da cultura local abordando a responsabilização como uma construção conjunta de cidadãos e governo. Com essa perspectiva, uma contestação que implicaria automaticamente desafiar as normas culturais se torna algo positivo e colaborativo, com potencial de produzir avanços em direção a fins comuns. Fazer isso sem comprometer a independência da sociedade civil, é uma tarefa complexa que seria favorecida se o ambiente político e jurídico fosse mais propício.

Normalmente, há três dificuldades principais que os cidadãos enfrentam ao lidar com o governo no monitoramento: servidores que não cooperam; processos que permanecem inacessíveis devido a brechas na legislação; e informações indisponíveis, imprecisas, incompletas ou inúteis.

Para que a G-Watch realize o monitoramento é crucial ter acesso às informações, aos processos e aos funcionários públicos envolvidos em uma determinada política ou serviço. Em cada estágio da relação com o governo são necessárias algumas informações públicas. Por exemplo, se a G-Watch não conseguir obter informações sobre quando ocorrerá um processo de licitação, não é possível um observador comparecer e monitorar a licitação. Ou, se um monitor da G-Watch puder ir às escolas, mas os diretores não fornecerem planos ou relatórios de desempenho, a avaliação da implementação do plano de continuidade do aprendizado será limitada. Ou, se um monitor da G-Watch puder acessar os relatórios do Departamento de Saúde ou das unidades de saúde comunitárias, mas as informações forem incompletas, imprecisas ou inúteis, haverá lacunas na análise da performance dessa unidade.

Em um ambiente político-jurídico favorável, o acesso a informações, processos e servidores públicos, não é algo tão problemático. A probabilidade de os funcionários do governo obedecerem é alta, os cidadãos dispõem de vários elementos que permitem tornar públicas as informações necessárias, incluindo a documentação das políticas e dos mandatos da liderança política. Em grande parte, isso ocorre em alguns dos locais onde a G-Watch já opera há uma década e os principais times locais envolvem muitos indivíduos dos grupos de interesse, inclusive do governo. Mas, mesmo assim, o acesso a informações precisas e úteis pode ser um obstáculo em função da ausência de uma ampla cultura de direito à informação na governança filipina.

Algumas informações essenciais para o monitoramento, como as alocações orçamentárias por localidade, precisam vir do governo nacional e se não estiverem disponíveis, a responsabilização no nível local será prejudicada, mesmo que o contexto local seja favorável.

Um exemplo desse tipo de desafio é a experiência dos voluntários da iniciativa PRO-Health da G-Watch provenientes da associação Samahan ng Nagkakaisang Pamilyang Pantawid (SNPP), de beneficiários do Pantawid Pamilyang Pilipino Program, um plano nacional de transferência condicional de renda que atende indivíduos em extrema pobreza.

A PRO-Health é uma iniciativa com uma abordagem estratégica de serviços de saúde pública que aprende dos e com os líderes do movimento da responsabilização.  Ela monitora serviços de saúde reprodutiva, dos primeiros 1000 dias e de saúde mental. Monitores voluntários entrevistam usuários em 13 locais em diferentes partes do país. Entre os 292 monitores voluntários da PRO-Health, recrutados e treinados pela G-Watch, 12 são líderes da SNPP.

Monitores voluntários da SNPP entrevistam usuários de serviços de saúde

Nas idas às unidades de saúde, os monitores voluntários da SNPP enfrentaram desafios tais como conseguir que os profissionais de saúde concordassem com as entrevistas e que as parteiras permitissem que eles observassem instalações. Novi, um líder da SNPP voluntário da PRO-Health em Cebu, relata experiências excruciantes de ter que voltar inúmeras vezes aos escritórios do governo local e às unidades de saúde para requisitar documentos e agendar entrevistas; outros líderes da SNPP em Samar, Mandaue e Lapu-lapu narraram as mesmas experiências.

Em outras áreas, os governos locais foram relativamente receptivos. Em Alang-alang, Catbalogan e Tacloban, foram enviadas cartas aos funcionários públicos locais e os monitores voluntários tiveram o aval das autoridades para as visitas às unidades de saúde – mas não antes de enviar e reenviar cartas e fazer repetidos contatos de acompanhamento das solicitações.

Em Paranas, a líder da SNPP, Wermay, e sua equipe conseguiram se reunir com o prefeito pessoalmente depois de enviarem uma carta da PRO-Health apresentando a iniciativa e solicitando um agendamento. O prefeito achou a iniciativa promissora e expressou seu apoio. Entretanto, mesmo assim persistiram os desafios no monitoramento das unidades de saúde.

Tendo em vista a experiência da G-Watch, o desafio é encontrar estratégias e táticas que incentivem, pressionem ou até mesmo forcem as autoridades governamentais a buscarem as reformas necessárias e a agir favoravelmente em relação aos resultados do monitoramento.

Ter aliados no governo, demonstrar ter uma ampla influência, usar evidências de forma eficaz, demonstrar conhecimento especializado, fornecer assistência técnica, ser eficaz na comunicação e na articulação com o governo, compartilhar boas práticas e incentivar funcionários a serem servidores exemplares, para serem possíveis alvos de ações de “faming”, são algumas das abordagens que a G-Watch vem usando para gerar respostas favoráveis do governo.

No momento em que escrevo, a PRO-Health está realizando ações de monitoramento e a expectativa é que surjam obstáculos quando os responsáveis forem solicitados a responder às conclusões e recomendações. As abordagens citadas acima usadas para gerar ação e resposta do governo e o que será necessário para envolver efetivamente o governo em um espaço cívico restringido serão temas de reflexão importantes nas próximas fases do trabalho de monitoramento e defesa de direitos da PRO-Health.

Riscos crescentes à medida que o direito à participação é contestado

Os três principais desafios mencionados acima se tornaram praticamente a norma em muitas localidades das Filipinas; a piora do espaço cívico torna essas dificuldades ainda mais graves. Agora, não só os funcionários públicos não cooperam, como alguns se mostram hostis. Os processos não só estão inacessíveis, há funcionários impedindo ativamente o acesso dos cidadãos-monitores aos espaços físicos oficiais. Não só as informações são imprecisas, incompletas e inúteis, como também é necessário muito mais esforço para consegui-las.

Com a piora no espaço cívico, as ações cidadãs pró responsabilização enfrentam riscos maiores e ainda mais sérios. Quando o governo não apoia nem possibilita a participação da sociedade civil, pelo contrário, a restringe, o ato em si de participar ― especialmente visando à responsabilização ― pode ser visto como perturbador ou radical. Quando a liderança política é repressiva e nega até mesmo os direitos humanos básicos, ameaçando a liberdade de expressão, o direito de reunião e o estado de direito, envolver-se em atividades de responsabilização automaticamente representa riscos de segurança para os cidadãos que já não estão apenas trabalhando para melhorar os serviços e as políticas, mas também lutam por seus direitos mais básicos. Isso aumenta drasticamente os riscos e as ameaças a ações que em contextos político-jurídicos favoráveis, seriam apenas ações cidadãs construtivas.

Esses riscos crescentes exigem mais e pressupõem diferentes habilidades dos monitores cidadãos e dos grupos da sociedade civil que os apoiam. Mesmo em contextos favoráveis, já é um desafio fomentar a capacidade necessária na sociedade civil, quando há mais demandas de eleitores e parceiros, ou mais espaços abertos, as organizações de cidadãos precisam de mais condições para responder às demandas e ocupar os novos espaços. Por outro lado, diante de maiores desafios, para superá-los as organizações de cidadãos devem ampliar suas capacidades e desenvolver outras diferentes. Há um número suficiente de grupos da sociedade civil? Eles têm know-how e recursos para monitorar e superar essa quantidade crescente e interminável de desafios? Como melhorar a capacidade de monitoramento da sociedade civil em contextos tão adversos?

A superação dos desafios e dos riscos como empoderamento

Em meio aos riscos e desafios impostos pela restrição do espaço cívico, possibilitar que os cidadãos monitorem e apresentem soluções torna-se um intenso processo de empoderamento que exige mais, leva mais tempo, consome mais recursos e envolve etapas aparentemente intermináveis, incluindo ajustes para preservar os direitos mais fundamentais e as práticas democráticas, tendo à frente e no centro das ações o próprio cidadão.

Na PRO-Health, monitorar num contexto de piora do espaço cívico se tornou um processo de organização e formação de coalizões. Quando o ambiente político é menos favorável, o recrutamento e o treinamento de monitores e a prática do monitoramento podem ser considerados um aprendizado cívico. A ampliação das redes de monitoramento tornou-se fundamental para a criação de um contrapoder coletivo. As atividades do monitoramento se orientam por uma abordagem “conheça seus direitos e reivindique seus direitos” e por uma intenção coletiva de melhorar a governança. Isso é muito diferente do monitoramento convencional realizado por terceiros com foco no levantamento de dados como fim em si mesmo.

Num espaço cívico em declínio, o monitoramento da G-Watch assume características de luta política:

  • Recrutar e organizar monitores não é apenas um simples processo de compartilhamento de informações. Agora é preciso convencer os cidadãos e os grupos a não terem medo, lembrando-os de seus direitos e inspirando-os com exemplos.
  • A capacitação não envolve apenas o conhecimento técnico dos cidadãos monitores, mas também os conceitos básicos, os fundamentos jurídicos e as premissas filosóficas da transparência, da participação e da responsabilização. Inclui o desenvolvimento da capacidade de enfrentar desafios, adaptando-se às situações e tomando as devidas medidas.
  • O monitoramento agora envolve preocupações com a segurança e o bem-estar, e com a forma de lidar com funcionários públicos hostis. As orientações para cidadãos monitores agora incluem os tópicos Segurança e Prevenção de Riscos.

 

Segundo a líder da SNPP, Wermay, o monitoramento é empoderador e é uma forma de afirmar como os serviços do governo devem ser prestados. Em um treinamento, quando perguntaram aos líderes da SNPP se eles conseguem seguir monitorando apesar dos desafios, nenhum deles hesitou. “Kakayanin!” [nós conseguimos], responderam. “Basta sama-sama sa PRO-Health” [Enquanto estivermos juntos na PRO-Health].

Para os líderes da SNPP e demais voluntários que persistem apesar de todas as dificuldades, o monitoramento da PRO-Health é uma plataforma para fazer a diferença.

 

 

Cidadãos monitores da PRO-Health em um seminário de orientação da G-Watch sobre monitoramento do orçamento da saúde, fevereiro de 2024

Todas as imagens: G-Watch

SOBRE AS PALAVRAS-CHAVE DE RESPONSABILIZAÇÃO

Termos essenciais na área de responsabilização frequentemente têm significados diferentes, para diferentes atores, em diferentes contextos – e em diferentes idiomas. O blog Accountability Keywords aborda “o que conta” como responsabilização, analisando os significados e o uso tanto das “palavras-chave de responsabilização” amplamente utilizadas como das que ainda estão sendo propostas. Ele se baseia em diálogos com dezenas de acadêmicos e profissionais em todo o mundo. No blog há um extenso Documento de Trabalho sobre Responsabilidade e mais de 40 postagens com reflexões sobre os significados e o uso de palavras-chave relevantes em seus próprios contextos e idiomas. Para compartilhar conosco seu interesse em uma publicação sobre alguma palavra-chave, envie-nos uma proposta para arc@american.edu.

 

SOBRE OS AUTORES

Joy Aceron author of political meaning of citizen monitoring

Joy Aceron

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Joy Aceron é diretora-coordenadora da Government Watch (G-Watch) e pesquisadora do ARC.

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