O controle social e a participação no Brasil

Author(s): Adrian Gurza Lavalle
Date: 13 outubro 2023
Country: Brasil
Language(s): Português

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O sentido político do controle social

No Brasil, assim como em outros países da América Latina, o termo “controle social” tornou-se mais comum do que “accountability social” ou seu equivalente etimológico “prestação de contas”, e adquiriu um sentido mais amplo, não apenas de fiscalização e incidência nas políticas públicas, mas também de cogestão e formulação das mesmas. A trajetória do “controle social” na região vincula as demandas de movimentos sociais, organizações populares e de outros atores da sociedade civil, às as experiências de inovação democrática de caráter participativo promovidas pelos governos que, a partir da primeira metade dos anos 2000, definiram a “virada à esquerda” na região.

“Controle social” denomina e politicamente conota programas como o monitoramento comunitário do cultivo da folha de coca, promovido pelo governo de Evo Morales na Bolívia (Farthing e Ledebur 2015; Vélez e Ramos 2022), bem como a notável criação de um Quarto Poder na Constituição boliviana, definindo-o como “controle social do Estado” (Zuazo 2017). Além disso, conota as “veedurías ciudadanas” implantadas na Colômbia e no Equador— definidas como uma modalidade para o exercício do “controle social” (Gutiérrez Magaña e Cepeda Villarreal 2022)— a implementação por lei do orçamento participativo nos municípios do Peru ou a implementação de centenas de ouvidorias e a disseminação de dezenas de milhares de conselhos gestores de políticas públicas no Brasil, para mencionar apenas alguns exemplos (Cunha Filho 2021; Gurza Lavalle e Barone 2015).

Cabe notar que o termo surge da ação política de atores sociais e, curiosamente, inverte os sentidos negativos de dominação geralmente associados ao conceito de “controle social” em várias tradições teóricas das ciências sociais. Também não corresponde satisfatoriamente à ideia de “social control“, embora amiúde seja assim traduzido (Fox 2022: 53–58). De fato, há quem considere que a “expressão ‘controle social’ é uma das expressões mais prevalentes no vocabulário político brasileiro” e observe que seu “significado foi drasticamente alterado ao longo das últimas quatro décadas” (Rich 2001: 35). Se no contexto do corporativismo de Estado instaurado por Getulio Vargas (1930–1945; 1951–1954) o termo se referia ao controle dos atores sociais pelo Estado, hoje ele tem um significado inverso, “de controle do Estado pela sociedade civil” (ibid.).

No Brasil, os usos do termo “controle social” criaram duas diferenças políticas em relação à ideia de accountability e ao seu equivalente etimológico “prestação de contas”. A primeira, crítica, em oposição às reformas do New Public Management e a um uso eminentemente técnico, entendido por movimentos sociais e organizações da sociedade civil como restritivo. A segunda, afirmativa, como projeção do que se esperava em relação à participação social nos novos canais institucionais participativos em crescimento e diversificação constante após a Constituição de 1988, principalmente durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT).

Na gestão presidencial de Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1995–2002), a accountability, então frequentemente traduzida também como “responsabilização”, estava no centro das reformas de modernização da administração pública (Pinho e Sacramento 2009). Foi uma compreensão gerencial da accountability centrada em resultados e no uso da participação social como mecanismo para promover eficiência administrativa. As reformas foram entendidas como parte de uma “ofensiva neoliberal”, sendo combatidas por movimentos sociais e atores da sociedade civil ativos no campo da esquerda. Assim, uma carga negativa agregou-se à natureza mais técnica da ideia de responsabilização e prestação de contas, inscritas em uma linguagem administrativa. Esse campo, cujos atores se mobilizaram durante os anos de transição democrática, é precisamente o mesmo que impulsionou demandas pela ampliação da participação social na administração durante o processo da Constituinte que selou a transição. Ao longo da regulamentação dos preceitos da Constituição de 1988 em relação à participação e da criação e implementação de novos canais que, ao longo do tempo, seriam conhecidos como “instituições participativas” (IPs), a ideia de participação mudou e, em relação às IPs, acabou ganhando uma nova conotação sob a ideia de controle social. Ou seja, a participação nas IPs é ou deveria permitir o controle social.

A trajetória dessas mudanças semânticas vincula a demanda por participação social à ideia de controle social e confere a esta um conteúdo ambicioso. Não se trata de uma “mera associação semântica”, mas de uma construção política que corre paralela a processos de reformas setoriais amplas e de institucionalização das demandas de movimentos sociais e organizações da sociedade civil que marcaram décadas da história do país (1988–2014) (Gurza Lavalle 2016; Gurza Lavalle et al. 2018). Assim, o controle social faz parte desse processo contínuo de institucionalização e definiu a compreensão predominante do propósito da participação social institucionalizada. Sem dúvida, as IPs exercem o controle social de forma desigual e diversa, não apenas porque sua eficácia varia dependendo da composição das respectivas comunidades de políticas e da força da sociedade civil nessas comunidades, mas também porque suas funções diferem de acordo com o setor e a modalidade específica da IP. No entanto, a ideia de “controle social” expressa as expectativas do que se espera das IPs: fiscalização efetiva, cogestão, regulamentação de aspectos operacionais e incidência na definição das diretrizes das políticas. Não necessariamente todas essas funções de modo simultâneo ou pela mesma IP, mas em combinação e grau que as tornam superiores à ideia de participação social com função exclusivamente consultiva.

Da participação ao controle social das políticas

É possível traçar em linhas gerais a trajetória dessas mudanças semânticas em três momentos. Durante os anos da ditadura, a “participação popular” não se referia às eleições nem às instituições do governo representativo, nem era liberal. “Participar” significava, em estreita ligação com a Teologia da Libertação [1], apostar na agência das classes populares ou, de acordo com os termos da época, tornar o povo ator de sua própria história. Além disso, a participação popular estava inserida em uma perspectiva mais ampla, preocupada com a construção de uma sociedade justa, sem exploração. Nesse contexto, “controle social” ainda é aquele exercido pelo Estado e pelos órgãos de segurança da ditadura sobre a sociedade.

Durante a Assembleia Nacional Constituinte, a participação, outrora popular, tornou-se cidadã. A “participação social” encarnou a progressiva liberalização política e respondeu ao desafio de incorporar e adaptar o ideário participativo herdado das duas décadas anteriores, de teor classista, às exigências de um discurso público com registro universalizante, adequado para influenciar a disputa da nova Constituição. Assim, os atores comprometidos com a participação popular reelaboraram seu discurso em termos de participação social, e o ideário participativo adquiriu traços mais abstratos, sendo consagrado em 1988 como direito do cidadão. Disposições constitucionais garantiram esse direito para além do sufrágio e dos mecanismos de democracia direta, assegurando a participação social na formulação, monitoramento e avaliação de políticas sociais e de bem-estar. O foco da participação social assumiu, no contexto da Constituinte, o sentido de democratização do Estado, ou seja, das funções da administração pública.

Por fim, a regulamentação dos preceitos constitucionais relativos à participação criou experiências institucionais para viabilizar a participação social nas políticas públicas. Ao longo da segunda metade dos anos 1990 e na década seguinte, a participação passou a ser cada vez mais “participação em espaços participativos”, e a democratização do Estado adquiriu o sentido de controle social sobre as políticas por meio desses espaços que, anos depois, receberiam o nome de IPs.

Assim, houve motivos para marcar politicamente as diferenças em relação à accountability (ou à “responsabilização”) dos anos FHC. Além disso, equivalentes etimológicos como a “prestação de contas” eram demasiado técnicos e pobres para expressar as expectativas do papel que se esperava que os atores desempenhassem nas novas instituições de participação, as quais encarnaram uma longa trajetória de mudanças semânticas e demandas por participação social efetivamente institucionalizada. O controle social é, ao mesmo tempo, expressão dessa trajetória e termo para expressar uma compreensão exigente de suas possibilidades do ponto de vista dos atores da sociedade civil que se mobilizaram para construí-lo. Vinte e quatro anos após a promulgação da Constituição, no final do terceiro momento, o “controle social” foi constitucionalizado com a aprovação da Emenda Constitucional No 71, 2012. [2]

Os ataques ao controle social e a resiliência das IPs

A IP que melhor expressa o sentido e alcance do controle social são os conselhos de políticas públicas, especialmente devido à sua capilaridade territorial, presença nos três níveis de governo e funções.[3] Os conselhos são o modelo institucional mais comumente adotado em diferentes setores de políticas para institucionalizar o princípio da participação social nas políticas públicas consagrado na Constituição. Em geral, são instâncias bipartites com representação paritária do governo e da sociedade civil. Sua difusão começou durante os anos do governo de direita de Fernando Collor de Mello (1990–1992), expandiu-se para a grande maioria dos municípios do país (5.570) nas políticas sociais durante os governos de centro de FHC e diversificou-se para mais de 40 áreas de políticas durante os dois mandatos presidenciais de esquerda de Lula (2003–2010) (Gurza Lavalle e Barone 2015). Atualmente, existem mais de 60.000 conselhos municipais, centenas de conselhos estaduais e dezenas de conselhos nacionais, que exercem funções normativas, fiscalizadoras e de cogestão de políticas em suas respectivas áreas, além de autorregulação e regulamentação de outras IPs (Gurza Lavalle et al. 2021).

Jair Bolsonaro declarou guerra ao controle social durante sua campanha, ou seja, a todas as IPs e aos ativistas, e, imediatamente após ser eleito, tomou medidas para anulá-lo. Por meio de um decreto presidencial (n° 9.759/2019) extinguiu “todos os colegiados” com alguma modalidade de participação social no nível da administração pública federal (Bezerra et al. 2022). O Supremo Tribunal Federal suspendeu os efeitos do decreto por vícios formais: conselhos criados por lei não podem ser revogados por decreto, um ato normativo inferior, e decretos devem ter objetos específicos e não formulações genéricas (“todos os colegiados”). Como resultado, ao longo dos quatro anos de seu mandato, o governo Bolsonaro (2019–2022) emitiu numerosos decretos e múltiplos atos administrativos para extinguir conselhos específicos que não foram criados por lei; e quando amparados por lei, para alterar suas regras de composição, convocação, periodicidade de reunião e funções.

O balanço final desses anos é eloquente e mostra a resiliência do controle social institucionalizado e suas limitações. Devido ao desenho do federalismo, dezenas de milhares de conselhos municipais ficaram fora do alcance imediato das medidas de desmantelamento do governo federal. No caso das IPs nacionais, alvo direto da ofensiva, a pesquisa mais abrangente realizada até o momento encontrou 103 colegiados, dos quais 34% permaneceram ativos e sem nenhuma alteração até o final desse governo; 28% ficaram ativos, mas sofreram alterações; 14% foram revogados e 24% se encontravam inativos durante esses anos (Bezerra et al. em prensa). A inatividade destes últimos antecedeu o governo Bolsonaro e evidencia algo já conhecido: o funcionamento do controle social é desigual entre os diferentes setores. Mesmo em condições francamente hostis, todavia, parte dos conselhos preservou suas funções, e os mais institucionalizados inclusive assumiram o papel de instâncias de oposição diante da gestão desastrosa das políticas públicas no governo federal, como no caso do Conselho Nacional de Saúde das medidas ante a pandemia de Covid 19 (Almeida 2020).

A revogação integral dos decretos que extinguiram ou limitaram os colegiados federais de controle social se encontra dentro das primeiras decisões do início do terceiro mandato do novo governo Lula (2023–2026), quatro dias após assumir a presidência.

Anotações

[1] A Teologia da Libertação é uma corrente teológica cristã comprometida com a resolução dos problemas sociais, assumindo uma opção preferencial pelos pobres. Ela teve uma grande presença na América Latina durante as décadas de 1960 e 1970. No Brasil, desempenhou papel importante na organização popular durante a ditadura, dando origem às Comunidades Eclesiais de Base e às pastorais.

[2] A emenda institui o Sistema Nacional de Cultura.

[3] Os conselhos são a experiência que exprime melhor as possibilidades do controle social no Brasil, mas não são a única, outras experiências relevantes com presença ampla no país são as conferências nacionais de políticas públicas e os comitês de bacias hidrográficas.

 

Bibliografía

Almeida, Débora Rezende de. 2020. “Resiliência institucional: para onde vai a participação nos Conselhos Nacionais de Saúde e dos Direitos da Mulher?” Caderno CRH 33: 1–24.

Bezerra, Carla de Paiva, Maira Rodrigues, e Wagner Romão. 2022. “Conselhos de Políticas Públicas no governo Bolsonaro: impacto do Decreto 9.759/2019 sobre a participação social.” Em Participação e ativismo: entre retrocessos e resistências, editado por L. Tatagiba, D. Almeida, A. Gurza Lavalle, e M. K. Silva, 37–64.  Porto Alegre: Zouk.

Cunha Filho, Marcio. 2021. “Ouvidorias públicas no Brasil: Do controle contábil-financeiro ao controle social.” Blog Accountability Keywords. https://accountabilityresearch.org/ouvidorias-publicas-no-brasil-do-controle-contabil-financeiro-ao-controle-social/.

Farthing, Linda C. e Kathryn Ledebur. 2015. Habeas Coca: Control Social de la Coca en Bolivia. Nova Iorque: Open Society Foundations.

Fox, Jonathan. 2022. “Accountability Keywords.” Accountability Research Center. Accountability Working Paper 11. https://accountabilityresearch.org/wp-content/uploads/2022/01/Working-Paper-11_Keywords_May-24.pdf.

Gurza Lavalle, A., E. Carlos, M. Dowbor, e J. Szwako, eds. 2018. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EDUERJ.

Gurza Lavalle, Adrian e Leonardo S. Barone. 2018. “Councils, Associations, and Inequality.” Em Paths of Inequality in Brazil. A Half-Century of Changes, editado por Marta Arretche, 25–46. Cham: Springer International Publishing.

Gurza Lavalle, Adrian, Hellen Guicheney, e Bruno G. Vello. 2021. “Conselhos e regimes de normatização: Padrões decisórios em municípios de gree porte.” Revista Brasileira de Ciências Sociais 36 (106).

Gurza Lavalle, Adrian. 2016. “Participação (des)igualdade política e democracia”, Em Desigualdades e democracia: O debate da teoria política, editado por Luis F. Miguel, 171–202. São Paulo: UNESP.

Gutiérrez Magaña, Héctor Manuel e Mariana Cepeda Villarreal. 2022. “¿Vigilancia sin control?: Las veedurías ciudadanas en Colombia y Ecuador.” Blog Accountability Keywords. https://accountabilityresearch.org/vigilancia-sin-control-las-veedurias-ciudadanas-en-colombia-y-ecuador/.

Pinho, José A. G. de e Ana R. S. Sacramento. 2009. “Accountability: Já podemos traduzi-la para o português?” Revista de Administração Pública 43 (6): 1343–1368.

Rich, Jessica A. J. 2019. State-Sponsored Activism: Bureaucrats and Social Movements in Democratic Brazil. Cambridge: Cambridge University Press.

Vélez, María A. e Beatriz Ramos. 2022. “¿Control Social o Regulación Disimulada?: Lecciones del Trópico de Cochabamba (Bolivia) para Colombia.” Blog Foco Económico. https://dev.focoeconomico.org/2022/10/25/control-social-o-regulacion-disimulada-lecciones-del-tropico-de-cochabamba-bolivia-para-colombia/.

Zuazo, Moira. 2017. “Bolivia: “Social Control” as the Fourth State Power 1994-2015.” Em Intermediation e Representation in Latin America: Actors e Roles beyond Elections, editado por Gisela Zaremberg, Valeria Guarneros-Meza, e Adrian Gurza Lavalle, 95–114. Basingstoke: Palgrave Macmillan.

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Key terms in the accountability field often have different meanings, to different actors, in different contexts – and in different languages. This project addresses “what counts” as accountability, analyzing the meanings and usage of both widely used and proposed “accountability keywords” – drawing on dialogue with dozens of scholars and practitioners around the world. The project includes both an extensive Accountability Working Paper and more than 30 invited posts that reflect on meanings and usage of relevant keywords in their own contexts and languages. To share a post about a keyword that interests you, send us a proposal at arc@american.edu.

AUTHOR INFORMATION

Adrian Gurza Lavalle é Professor Livre Docente do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), Presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Vice-Diretor do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e Editor-chefe da Brazilian Political Science Review (BPSR). Seu trabalho foca na política da sociedade civil, gobernança democrática e nas instituições participativas.

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